Delirium em Pacientes Críticos.

O delirium é um estado confusional agudo que representa uma disfunção cerebral aguda a qual envolve uma ampla variedade de manifestações clínicas.(1)

Substanciais evidências demonstram que o delirium em pacientes críticos se associa com piora dos desfechos, incluindo aumento do tempo sob ventilação mecânica, da permanência no hospital, dos custos e da mortalidade.(2,3) Mais ainda, apesar dos avanços no suporte à vida, pacientes criticamente enfermos que apresentam delirium durante sua permanência na unidade de terapia intensiva (UTI) podem ter um comprometimento de sua recuperação funcional global, assim como sequelas cognitivas em longo prazo.(4) Assim sendo, foram realizados diversos estudos para avaliar o impacto de intervenções farmacológicas preventivas(5) na redução da incidência e duração da disfunção cerebral, já que a eficácia da maior parte dos tratamentos ainda não foi comprovada. Estas formas de tratamento envolvem a modificação dos paradigmas de sedação por meio da redução do uso de benzodiazepínicos, uso de antipsicóticos típicos e atípicos e o uso de agentes colinérgicos como a rivastigmina.

As estatinas são consideradas medicações potenciais, com base na hipótese de que podem tanto prevenir quanto tratar o delirium por meio de seus efeitos antiinflamatórios capazes de modular as vias moleculares da inflamação e ativação da micróglia, mecanismos chave na patogênese do delirium.(6) Neste número da Revista Brasileira de Terapia Intensiva, Cruz et al.(7) testaram a hipótese de que pacientes em uso de estatinas previamente ao procedimento cirúrgico teriam uma menor incidência de delirium após cirurgia cardíaca. Em seu estudo foram inscritos 169 pacientes, tendo sido analisadas informações sobre dados demográficos, exposição a estatinas e os desfechos, inclusive ocorrência de delirium. Na comparação de pacientes que usaram estatinas com pacientes que não utilizaram estes fármacos, os autores relatam não ter identificado diferenças significantes em termos de dados demográficos ou desfechos do delirium. Este estudo tem uma lógica interessante baseada nos aspectos fisiopatológicos e população alvo, embora tenha limitações importantes que impedem qualquer inferência sobre o papel das estatinas no delirium. Primeiramente, o tamanho limitado da amostra e o número relativamente baixo de pacientes que desenvolveram delirium (n=23) impediram uma análise mais profunda e o uso de metodologias que, se utilizadas, poderiam ter levado a conclusões substancialmente diferentes. O uso de análise de variáveis múltiplas e pontuações de propensão são exemplos de métodos cada vez mais utilizados na literatura referente a terapia intensiva como forma de identificar fatores independentemente associados com desfechos e também ajustar para potenciais fatores de confusão. Em segundo lugar, como em qualquer estudo observacional, os autores não tiveram como controlar a dose, duração e indicação das estatinas. Isto pode ter levado aos assim denominados "efeitos de usuário sadio", assim como a outros vieses de indicação. Finalmente, a continuação do uso de estatinas após a cirurgia não foi avaliada detalhadamente.

Os resultados deste estudo e os relatos conflitantes de Redelmeier et al. e Katznelson et al.(8,9) não devem, de forma alguma, diminuir o entusiasmo no estudo do papel das estatinas como modalidades de prevenção ou tratamento de delirium, considerando-se as propriedades pleioitrópicas destes fármacos e as limitações destes preliminares, porém importantes estudos. Estudos tanto in vitro como em seres humanos demonstraram que, além de seus efeitos na síntese do colesterol, as estatinas têm efeitos antiinflamatórios, imunomoduladores, de estímulo da função endotelial e anticoagulantes.(10) Estes efeitos podem prevenir ou atenuar o delirium durante doenças críticas ao agir nos mecanismos causais, inclusive neuroinflamação, lesão da barreira hematoencefálica, apoptose neuronal, isquemia e hemorragia, e ativação da micróglia. São, portanto, necessários grandes estudos observacionais para avaliar o papel do uso de estatinas tanto antes quanto durante a doença crítica na prevenção de delirium e, quem sabe, até mesmo no comprometimento cognitivo em longo prazo. A combinação de desfechos clínicos com a mensuração de marcadores inflamatórios e de lesão/ativação endotelial podem fornecer mais informações mecanísticas referentes ao papel das estatinas na redução da disfunção cerebral, ao mesmo tempo em que fornecerá informações relevantes sobre a melhor duração e dose de estatinas necessárias para atenuar estes marcadores de lesão. Se os resultados dos estudos observacionais forem promissores, ensaios controlados com placebo poderiam investigar a eficácia das estatinas iniciadas precocemente durante a permanência na UTI na prevenção ou tratamento do delirium e suas sequelas neurocognitivas. Particular atenção deve ser dada à identificação e estudo em separado do papel da administração de estatinas em pacientes já usuários destes fármacos e em pacientes que nunca utilizaram estatinas, considerando os dados recentes que sugerem um aumento da inflamação em usuários de estatina submetidos a suspensão da medicação. Tanto estatinas lipofílicas quanto hidrofílicas devem ser avaliadas nos ensaios clínicos, considerando a possibilidade de diferentes efeitos na neuroinflamação durante doença crítica. Devem ser consideradas amostras de tamanho suficiente, para permitir que se obtenham subgrupos relevantes como idosos, pacientes com sepse e pacientes com doença aterosclerótica prévia. Finalmente o perfil de segurança das drogas administradas durante a doença crítica é sempre uma preocupação, já que alterações das funções renais e hepáticas e outros fatores podem predispor a reações adversas; felizmente as estatinas são em geral seguras e em suas doses padrão resultam em incidências muito baixas de miopatia (0,01%) e anormalidades das enzimas hepáticas (0,1%).

Entretanto, o que devem fazer os médicos até que ensaios clínicos forneçam as respostas em relação às melhores formas, não farmacológicas e farmacológicas, de tratar e prevenir o delirium? Embora sua fisiopatologia não tenha ainda sido completamente compreendida, diversos estudos identificaram fatores associados a um maior risco desta complicação.(11,12) Diferentes fatores como idade, comorbidades, demência e fatores genéticos não podem ser modificados por intervenções médicas, mas fornecem ao médico uma avaliação do risco do paciente individual. Por outro lado, numerosos fatores de risco para delirium são modificáveis com intervenções relativamente fáceis e de baixo custo, como sedação poupando benzodiazepínicos, mobilização precoce, correção de distúrbios hidroeletrolíticos, prevenção da hipóxia, liberação precoce da ventilação mecânica, assim como a remoção de dispositivos invasivos (como cateteres venosos e urinários). Estas intervenções, embora com evidências de redução do risco de delirium, estão longe de ser amplamente utilizadas nas unidades de terapia intensiva brasileiras(13) ou do restante do mundo.(14) Como uma abordagem interessante e prática desta questão foi proposto o conceito de "liberação e animação". Os pilares desta abordagem envolvem manter os pacientes criticamente enfermos na UTI confortáveis e sem dor, mas o mais despertos possível, empregando estratégias que os libere da ventilação mecânica e o início precoce de terapia ocupacional.(15)

Uma proposta organizacional para ajudar a liberar e animar pacientes é o pacote ABCDE, que consiste em: "Awakening and Breathing Coordination of daily sedation and ventilator removal trials; Choice of analgesic and if needed sedatives; Delirium monitoring and management; and Early mobility and exercise" [estudos de coordenação de despertar e respiração, controlando a sedação diária e remoção do ventilador; escolha de analgésicos e sedativos conforme necessário; monitoramento e controle do delirium; mobilização e exercícios precoces]. Foi demonstrado que os elementos deste pacote se associam com menor tempo sob ventilação mecânica, permanências mais curtas na UTI, menor duração e incidência de delirium, menos comprometimento cognitivo e até mesmo melhora da sobrevida. Com a validação de instrumentos de monitoramento de delirium de fácil utilização ao pé do leito, a completa adesão ao processo e as tendências de prevalência de delirium devem ser introduzidas e utilizadas como indicadores de qualidade em UTI. Cremos que o delirium é uma importante questão de segurança para o paciente e a redução do delirium no ambiente de UTI deve ser um alvo a ser perseguido.

Revista Brasileira de Terapia Intensiva.

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